Artigo no Correio do Povo sobre o 11 de Setembro – A tragédia reveladora
Nos 15 anos após o “11 de Setembro”, tem sido constante tentar entender o que ele significou e se foi uma mudança irreversível na história. Uma resposta pode ser dada olhando o caminho que estava sendo trilhado até esta data e apontando inimigos que impedem o nascimento do século XXI, cuja gestação pode ter sido problematizada, mas não encerrada, se os líderes mundiais tiverem consciência disso.
Certamente, foi paralisado o surgimento de um novo tipo de relações internacionais e houve um recuo no processo histórico. Logo após a Guerra Fria, acreditava-se que haveria precedência à diplomacia e às trocas econômicas no relacionamento entre os países e o mundo caminhava para a Governança Global, pois a queda de uma das ideologias levava a um mundo com semelhante filosofia política e similares ideias econômicas, algo que predisporia ao diálogo, mesmo com a pluralidade das perspectivas religiosas e étnicas. Os países pensavam em integração e passavam a dar importância maior aos Regimes Internacionais, com os Organismos Internacionais sendo os instrumentos balizadores, fiscalizadores e gerenciadores de comportamentos coletivos. Não foi a toa, também, que os Blocos Econômicos viraram moda.
Contudo, esta percepção de homogeneidade não decorreu do triunfo de uma ideologia, mas das transformações geradas pelo desenvolvimento científico e tecnológico que se deu ao longo da segunda metade do século XX, especialmente na telemática, nos transportes, na logística, nos métodos de produção. Essa mudança permitiu que as grandes corporações pensassem suas cadeias produtivas em escala global, podendo investir onde lhes fossem dadas condições para aportarem recursos, know-how, tecnologia, capital humano e partes das suas produções. Ou seja, os atos das grandes corporações geraram a possibilidade de integrar as economias dos países, já que se produzia em escala mundial, originando proximidade cada vez maior entre as sociedades, e, por isso, os governos teriam de recuar na prática de tomar decisões unilaterais. Eis outra novidade que estava no cenário: os governos dos grandes Estados perceberam que não podiam mais decidir sem consultar seus pares, já que as cadeias produtivas de suas empresas nacionais estavam espalhadas e qualquer ação individual poderia afetar a própria estabilidade econômica. Tão importante quanto isso, viu-se que o mundo não seria mais gerenciado apenas pelo ente estatal, com suas relações exteriores baseadas nos interesses nacionais, que pautavam a disputa por recursos limitados e estimulavam a política de poder. Assim, emergiram vários tipos de atores negociando no mundo. Tornaram-se protagonistas, com maior ou menor autonomia decisória, as Corporações Internacionais, as Organizações Internacionais e ONGs Internacionais, que obtiveram poder ou influência para ter capacidade real de ação. Mas, outros tipos de atores não desejáveis também emergiram, os chamados difusos: o terrorismo, o crime organizado em suas múltiplas expressões, o narcotráfico e outras maneiras de traficância. São difusos porque não atuam abertamente, mas travestidos nos corpos dos demais tipos de atores. Eles se infiltram para agirem em função de interesses marginais e ilícitos.
Aí vem o “11 de Setembro”, uma ação de um desses atores difusos, que levou as grandes potências a recuarem no caminho que as relações internacionais trilhavam, voltando os governos a planejarem principalmente em função da segurança nacional, a agirem sobre suas sociedades civis e a tomarem decisões unilaterais em política externa e isso fez com que ignorassem mais uma novidade do mundo que estava sendo parido: que o ser humano, e não a nação, deveria ser o foco dos planejamentos dos Estados em suas relações, e dentro de projetos coletivos internacionais.
Este, inclusive, é um problema chave para entender a geração dos atores difusos, já que, no final da Guerra Fria, a suposta homogeneidade não se expressou na criação de um mundo com sociedades equilibradas e manteve os mesmos abismos sociais que havia antes, ou seja, não se viu a resolução dos problemas que produziam grupos marginais, com grande número de segregados, detentores de poucas chances de participação na vida política e na fruição dos benefícios econômicos e bens da cultura. Uma fonte rica à geração de agentes para os atores ilícitos.
O “11 de Setembro” foi o momento que representou este recuo nas relações internacionais, porque deu uma justificativa para a continuação da forma de fazer política internacional do século XX, mesmo com esta complexidade contemporânea, que presencia o fervilhar das sociedades civis, querendo ser protagonistas do processo histórico e exigindo que seus governos se comportem como servidores do povo, respeitando as exigências do ser humano, ao invés de se pautarem pelo conceito de nação ou pelo coletivo abstrato.
No entanto, observadas as mudanças ocorridas ao longo dos últimos 60 anos, elas foram muito profundas para que o recuo e mudança do processo histórico produzido após o “11 de Setembro” seja irreversível, exceto se for concretizada a tentativa de recriar a Guerra Fria e for mantida essa atual marcha para a guerra geral, bem como se não for solucionado conjuntamente o problema da segregação social, principal viveiro dos agentes para os atores difusos.
Mais fortes que as tentações de fazer renascerem antigos inimigos são as certezas de que os principais novos antagonistas são mais graves, pois decorrem da incapacidade de os governos minarem os inimigos essenciais: a exclusão nas suas mais variadas formas; o antagonismo como prática da política; e o recuo na predisposição em buscar decisões coletivas, deixando as unilaterais apenas para os problemas do direito à autodeterminação. O mais interessante é que esses inimigos só poderão ser vencidos se as ações forem conjugadas, afinal, como dito, as mudanças foram estruturalmente muito fortes para impossibilitar que o século XXI surja. Cedo ou tarde ele terá de vir, pois a alternativa ao seu nascimento tem grande probabilidade de ser um outro recuo, mas, nesse caso, à pré-história.
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Marcelo Suano
Cientista Político, fundador do “Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais”