A crise sem fim na Síria: o fracasso do ser humano como espécie
Poucas profecias podem vir a ser tão plenamente confirmadas quanto a de que o ser humano é um ente destinado à extinção, por causa do seu vazio existencial e de sua incapacidade de comunicação e respeito pelo outro, apesar dos belos exemplos norteadores da humanidade que surgiram ao longo da história, bem como daqueles casos de sujeitos simples e anônimos que nos fazem ter esperança, pois são capazes de tirar o alimento de sua própria boca para dar a um desconhecido em sofrimento, mesmo diante de sua própria fome. Acreditem, isso existe! Basta que saiamos de nossa toca petulante e olhemos nas ruas, pois veremos pessoas ajudando a outros, nem que seja apenas com um gesto de carinho.
O mais recente exemplo dessa trilha do fracasso está ocorrendo neste momento, com as novas denúncias de ataque com armas químicas na Síria. O ato é monstruoso, isso é indiscutível, e o responsável tem de ser identificado e punido, com todo rigor, pela comunidade internacional, que deve usar de todos os instrumentos coletivos para executar a pena, a qual tem de ser legitimada mundialmente.
Exatamente por ser necessária a legitimação é que as decisões deveriam ser pautadas pelo comportamento de respeito obrigatório, para que haja coerência entre o que se exige do outro e a atitude daqueles que fazem as exigências, mas, neste momento, apenas se esta produzindo mais problemas e com bastante irresponsabilidade.
Não se pode descartar ainda uma possível má-fé a nortear os líderes que vem apontando temerariamente para os supostos culpados. Sem rodeios, as acusações são diretas contra o governo Assad, da Síria; a Rússia e o Irã. Algumas perguntas, no entanto, têm de ser feitas. Comecemos com esta: baseado em que, estão sendo feitas essas acusações?
Ora, se há provas, porque não são apresentadas? E porque se está confirmando a acusação antes mesmo de buscar as provas? O correto não seria primeiro reunir os possíveis envolvidos, acolher as vítimas e salvá-las, para depois fazer as acusações? Se estivéssemos no meio de crianças, as que assim agem, acusando imediatamente, seriam chamadas de moleques, mas, como estamos no meio de adultos, estes é que podem vir a ser chamados de criminosos.
Pelo que está sendo visto, as certezas decorrem apenas do fato de que o agente químico usado é supostamente o mesmo aplicado em passado recente, a quem se atribuiu a culpa ao governo sírio, mesmo que até isso ainda esteja sob questionamento. Mas, ainda assim, tal relação não comprova nada! Não podemos esquecer que muito recentemente a Rússia foi acusada de forma dura pela Primeira-Ministra britânica com uma certeza absoluta de que os assassinatos do ex-agente duplo russo e de sua filha tinham sido feitos a mando do governo da Rússia, por ordem de Putin. Faz alguns dias e os investigadores chegaram à conclusão de que não há como identificar onde foi produzido o veneno e, até aquele momento, dizer que só a Rússia o produzia era a garantia de que somente o seu governo poderia ter dado a ordem!
Que lógica pobre vinda de um dos lugares responsáveis pelo grande desenvolvimento da Lógica contemporânea, a Inglaterra. Pior, com tais acusações, surgiram duas novas questões: porque o governo russo faria esse assassinado neste momento em que ele precisa ter boa visibilidade internacional? E, por qual razão a Primeira-Ministra fez tal acusação de forma tão contundente, já que não tinha as provas, tanto que foi necessário fazer as investigações externas?
De certeza ficou claro para o mundo a necessidade desesperada de uma liderança política para arranjar um problema externo e tentar resgatar algum apoio dentro de seu país, já que ela está em baixa diante de seu povo e de seu partido. Este ato foi visto como muito irresponsável, pois não se ofende um país e um governo sem ter as certezas em suas mãos. Na realidade, nunca se ofende um governo e um povo, em qualquer situação, pois comportamentos do gênero é que distinguem a civilização da barbárie.
Voltando a questão da Síria, pelas imagens chocantes todos chegamos a certeza de que o ataque ocorreu, e dói no coração e na alma ver aquelas pessoas sofrendo, principalmente aquelas crianças, e somente nojo nos faz surgir pensando em que é o culpado.
Mas esta é questão: quem é o culpado? Inicialmente, a acusação contra Assad foi feita pelo grupo rebelde sírio Jaish al-Islam, que é opositor do governante e tem como objetivo derrubar o seu governo para tornar a Síria um Estado Islâmico guiado pela Lei da Sharia! Ninguém está vendo isso? Será se já esqueceram como surgiu o Estado Islâmico que agora está prestes a ser derrotado?
De uma forma tristemente fria, mas necessária, temos de perguntar por qual razão Assad iria colocar o mundo inteiro contra si, aplicando armamentos químicos, exatamente neste momento em que tem superioridade sobre todos os seus opositores, já retomou o controle de boa parte do território, está avançando constantemente e, se desejasse fazer uma matança, poderia executá-la usando apenas as armas convencionais! Esta é outra questão! Parece ser uma bobagem que o mais idiotizado dos tiranos não cometeria, embora, somos obrigados a admitir, que tudo se pode esperar do ser humano.
O quadro que está desenhado seria apenas triste se não fosse gerado por atitudes tão inconsequentes. Infelizmente, a embaixadora dos EUA na ONU ofendeu a Rússia diretamente, desrespeitando todas as regras de comportamento diplomático e, quando os sírios foram falar, ela se levantou! Excepcionalmente, ela poderá estar cometendo o erro de sua vida, pois, se estiver errada, ou terá de se desculpar de forma humilhante; ou, por orgulho, poderá manter o caminho trilhado por si e pelo seu governo, levando o mundo a um conflito bélico de consequências incalculáveis. Não esqueçamos que o cargo que ela ocupa é um cargo chave para os norte-americanos. Normalmente, quem tem pretensões presidenciais tenta ocupá-lo, não sendo qualquer um a ter esta chance, o que mostra a dimensão da sua atitude, já que aqueles que respeitam os EUA, esperamos que coisas bem melhores deveriam vir dela.
Uma certeza começa e ficar clara: o objetivo que cada vez mais transparece é apenas constranger a Rússia. Tudo está sendo feito para isolar a Rússia e empurrá-la para algum lugar. O problema é saber para que isto está sendo feito e para onde querem mandá-la!
O que desejam? Que a Rússia se ajoelhe? Que o os russos entreguem seu território e se lancem ao mar para se afogar, sabendo que até lá terão de andar muito a pé, talvez atravessando a Europa? Que entreguem todos os seus recursos? Que mudem o idioma? Que acabem com o frio no seu território, pois lá é muito frio e tem gente que se irrita com isso? Que se naturalizem em outra nação?
Em relação a Putin, querem o que? Que ele chegue e diga: senhores, decidi entregar o poder e acho que o melhor é retiramos qualquer bandeira russa de nosso país. Além disso, estou cedendo nossos armamentos e concordo com tudo o que vocês estão dizendo a meu respeito, mesmo que não tenham provas!
Não é possível que tenham esquecido de ler os próprios intelectuais que formaram conceitos para o Ocidente, dentre eles Samuel Huntington, conservador e formado em West Point, que, dentro da sua tese do “Choque de Civilizações”, foi muito claro quando, ao descrever a civilização ocidental, afirmou mais ou menos isso: a Rússia, apesar de ser um meio termo entre Ocidente e Oriente é mais próxima do Ocidente, ela é ocidental em sua essência, e deve ser trazida definitivamente para o nosso lado. Eu diria como irmã!
Independentemente disso, será que não conseguem ver que se empurrarem a Rússia contra o muro estarão criando uma situação sem retorno, pois não haverá outra alternativa senão responder à altura! Será que não conseguem ver o erro estratégico que está sendo cometido? Será que estão cegos para três coisas que a história dos russos nos apresentou?
Primeiro, pela história recente, que eles têm armas suficientes para causar um estrago em que ninguém ganhará e todos perderão. Segundo, pela história de seu povo, que seu principal talento não é a ciência, a música, a poesia, ou qualquer outra coisa, mas a arte de sobreviver! Não é à toa que cientistas da natureza diziam que, no caso de uma guerra nuclear, certamente alguma espécie teria condição de se adaptar e manteria a vida no planeta, mas começaria tudo de novo, e depois recebiam como resposta de historiadores a gozação de que não seria necessário começar novamente do zero, pois a humanidade também teria um representante, pois se esta possível espécie conseguiria ser resistente à radiação, a história mostrava que que os russos pareciam ser resistentes a qualquer coisa. Em terceiro lugar, que existe um sentimento entre os russos de que eles já passaram por tanta coisa que se forem provocados devem ir até o fim, e não terão receio de enfrentar qualquer contenda. Em síntese, estão fazendo o joguinho do “Big Chicken” com a Rússia, só não sei se é adequado fazer isso com russo.
Diante do quadro, a única coisa que se espera é que todo esforço seja dedicado primeiramente em cuidar das vítimas, ao invés de gastarem este tempo inicial fazendo reuniões para decidir se devem bombardear a Síria novamente e para fazer ameaças contra os países acusados de serem responsáveis, algo que, certamente, poderá criar mais mortes, ao invés de salvar vidas.
Há algo que só burocrata de governo não consegue entender: uma hora numa sala gritando para ver quem é que manda, não altera nada nas vidas destes, mas cinco minutos de atraso para quem está sofrendo com algo como este ataque é uma eternidade e pode significar a sua morte.
Depois de fazerem o que é necessário, que o mundo exija transparência de todos os envolvidos, pois a Síria é um campo de treinamento de erros políticos e diplomáticos de dezenas de potências, de forma que dificilmente se pode dizer que alguém está interessado em salvar o povo sírio. Se assim fosse, teriam resolvido o problema no início da guerra civil, quando surgiu a proposta de fazer um governo transitório, com a presença de todos os setores, incluindo membros do governo Assad, e caso este não fosse aceito neste governo transitório, que ele renunciaria, e receberia asilo na Rússia.
Como quem estava sofrendo era o povo sírio, todos se mostraram garbosos para dizer não! Esta hipótese não é aceitável! Queremos vingança! Queremos a cabeça de Assad e que o povo aguente! No limite, foi isso que falaram. Como dizem, o problema daqueles que querem apenas a vingança, ao invés da justiça, é que certamente alcançarão, mas ela se voltará contra quem a alcançou.
Agora, que não venham dizer que estão preocupados com este ataque ao ponto de ter crises histéricas, pois, para muito além dessas dezenas de vítimas, já se somam centenas de milhares de mortos que foram assassinados não apenas pelos combatentes naquele conflito, mas por todos os envolvidos na crise, devido ao orgulho, a vaidade, a incapacidade estratégica e a desumanização evidente dos tomadores de decisão que olharam para o seu próprio umbigo e problema político pessoal, ao invés de se colocarem no lugar do outro e decidir que, primeiro, deveriam ter protegido o povo e, se a solução fosse um governo transitório, que apenas se exigisse o afastamento de Assad, esperando para justiçá-lo quando o povo estivesse a salvo.
Isso poderia ter sido feito, mas os orgulhosos daquele momento, optaram por não fazer. Pior, decidiram tomar Assad como o homem mais violento naquele cenário, esquecendo que parte da oposição ao seu governo, que tanto apoio recebeu do Ocidente, é mais violenta que ele, e uma vez no poder poderia deixar o Estado Islâmico com inveja.
Exatamente neste ponto dos tomadores de decisão é que vemos uma das grandes desgraças do nosso tempo, excetuando-se uns cinco ou seis nomes, com suas características pessoais (e dentre eles podem ser citados, Xi Jinping, com sua paciência confuciana e, paradoxalmente, como uma flegma quase britânica; Vladimir Putin, com sua objetividade e determinação; e Justin Trudeau, com seu charme, elegância e comportamento verdadeiramente democrático), nunca antes na nossa história tivemos uma miríade de líderes tão perdidos quanto hoje.
Exatamente por isso poderemos estar caminhando numa trilha que mostrará aos anjos e demônios que o ser humano realmente é um fracasso como espécie e não deve mais ter chances, que se destrua, e, certamente, até o Diabo deve estar dizendo para os seus pares: no inferno eu não quero mais essa gente, que apodreçam no limbo do esquecimento!